sábado, agosto 19, 2006

Lisa

Ela volta pra casa depois de mais um dia. Um dia daqueles em que não acontece nada de incomum. Tudo nos seus devidos conformes ocorre, transcorre, passa.
Podia passar na casa da mamãe hoje, ou na soverteria. Está quente! Ah! Mas fiquei de ir na semana que vem por lá, então é melhor ir só de uma vez.
Sobe no ônibus. O de sempre. Com o mesmo cobrador mal-humorado, com o mesmo motorista que arranca e faz com que as velhinhas sentadas nos bancos preferenciais e em pé, se desequilibrem pra frente, segunda lei de Newton ou terceira? Tudo normal....como naquela música....”it´s just another day..thutchuthutchuthu”, daquele beatle.
Desce uma parada antes pra ter a oportunidade de caminhar um pouco mais e sentir toda aquela poeira levantada pelos caminhões que passam na pista, pra ver o sol com seus últimos raios....esse não é um dia em que ela vai chegar em casa louca pra tomar banho, nem um daqueles em que ela vai dar um beijo no marido, muito menos regar as plantas que estão quase morrendo por falta de atenção. Ela abre a porta. Olha. Seus sapatos ela sempre tira na porta, pra não contaminara a casa com as impurezas da rua, germes, bactérias, ácaros, chiclete grudado, provavelmente algum rastro de lixo e imundície que já foi levada pelo terceiro dia de chuvisco, mas que estava lá a três dias atrás; ela não viu essa sujeira, mas já suspeita que ela estava lá. Neuroses.

Por isso tira os sapatos.
A torneira do banheiro está pingando como há dias. A tv ligada no quarto de casal. Seu marido dorme de cueca na cama. Jogado. Como se estivesse no quinto sono. Ela só o olha de longe. Não vai acorda-lo. Não vai beijá-lo. Simplismente nem vai notá-lo. Ela está descalça agora, e abriu a braguilha. Ela volta pra porta de cozinha e depois vai pra janela que dá de vista pra rua. Mora no primeiro andar de um prédio de 10 andares num bairro de classe média baixa.
Na rua há dois mendigos em um canto esperando por benevolência alheia. Passa uma mãe com uma filha segurando em sua mão. Há um mercado na esquina da frente; o sol bate no plástico que cobre as frutas e enceigueira o vendedor; ele está sempre de óculos escuros. Muro, muro e mais muro.....não há muito o que se ver.....na rua....ela fecha a janela.

Nesse momento não há muito a ser ver por dentro. Ela nem se enxerga mais, não sabe como e nem porque se casou, não tem vontade de ver sua mãe, não lembra de suas irmãs e há tempos não visita nenhum dos parentes. “Será que estou doente?” pergunta pra si mesma...hummmm...não....sua consciência diz que ela passou tanto tempo procurando algo que lhe desse base, firmeza, que esqueceu como consegiu tudo isso. Sua vida. Na época um casamento parecia uma boa idéia. Hoje nem tanto. Não se lembra das paixões, não se lembra do desejo, nem se lembra do que realmente gostava de fazer aos 18. Agora com 30, com um apartamento quitado, casada e com um bom emprego, não se sente satisfeita. O que ela quer? Será que é só inquietude? No jornal a inquietude é nacional e internacional.....ela é então só reflexo dos processos globais.....dolár em queda, fome na África, guerra no Iraque, Líbano, escândalos na política brasileira....não....ela não está inquieta por isso...
Egocêntrica.
Ela, porém, não vai se matar, não tem coragem, sempre achou isso ridículo. E fugir? E sumir? Bem...isso ela pondera....deixar tudo que construiu, já que não está fazendo sentido....até quando vai ficar insatisfeita...ela não vive num sonho, nem na realidade. Ela não quer voar, nem acredita em políticos honestos (afinal, quem acredita?). Ela não gosta de carros e odeia a Internet. Toca sax, gosta de música. Compreende a liguagem musical. Ela não sabe como tudo vai terminar....não entende de destino, não entende de escolhas e muito menos de teoria do caos. Ela apenas faz as escolhas que lhe são agradáveis. Se casou, ótimo! Tem um emprego, que bom!, mas o que ela realmente quer?....acho que ela vai simplesmente dormir do lado do seu marido, que não se lembrar de onde tirou. E acordar... Ou não.....
No dia seguinte ela conheceu um balonista e voou com ela por toda a América, até que o balão não tinha mas gás hélio e foi forçado a pousar no meio da américa central em uma ilha pouco habitada, por pessoas que se pintavam e não falavam português. “Eles não nos incomodavam, a gente não incomoda eles.” Ela sabia que não estava num sonho. Nem numa época.

Viveu lá durante alguns meses, até que o balonista consertou o balão e se encantou com uma nativa levando-a consigo na próxima viagem. Foi de madrugada. Lisa estava dormindo.
Ao acordar estava só, mas não estava ao lado de seu marido que suportou sua ausência psicológoca durante todos esses anos. Não estava ao lado de sua mãe que cuidou dela com carinho durante 16 anos. Estava numa ilha na América Central, com pessoas desconhecidas que não a incomodavam, porém não se comunicavam; estava com frio, estava só...como sempre estivera e nunca tivera coragem de mudar isso. Agora muito menos.
Vai morrer e as pessoas que se importam com ela sofrem com a esgoísta que não vê nada além de seu umbigo.
Pensa em seu esposo. Desenha um cículo na areia com uma saliência no lado esquerdo e se deita lá até que não sinta mais fome, nem calor, nem frio, nem alegria....até que um tsunami, anteriormente previsto naquela notícia que ela não prestou atenção que passava na tv quando chegou em casa e seu marido estava na cama, invade a ilha e deixe no esquecimento toda a sua memória.