quarta-feira, novembro 14, 2007





7 de maio


Pelo menos estou vivo. Em movimento, andando por aí, perdendo ou ganhando, levando porrada, passando fome, tentando amar. "De cada luta ou repouso me levantarei forte como um cavalo kovem", onde foi que li isso? Sei: Clarice Lispector, meu Deus, foi em Perto do Coração Selvagem.

C.F.A - Lixo e Porpurina, extraído de Ovelhas negras



Em momentos de medição de vento de 15 em 15 minutos, relatado mínima: 2,9 m/s, máxima: 9,6; céu azul claro, barracão sobre mim, sal e areia no cabelo, banho de poço com água barrenta, frio, muito frio de noite, fogueira também....e ela foi ótima companhia nas medições de vento: Clarice.


Tanta Mansidão


Pois a hora escura, talvez a mais escura, em pleno dia, precedeu essa noite, e essa coisa que não quero ainda definir é uma luz tranquila dentro de mim, e a ela chamaria alegria, alegria mansa.

Estou um pouco desnorteada como se um coração me tivesse sido tirao, e em lugar dele estivesse a súbita ausência, uma ausência quase palpável de que era antes um órgão banhado da escuridão da dor. Não estou sentndo nada. Mas é o contrário de um torpor. É um modo mais leve e silencioso de existir.

Mas estou também inquieta. Eu estava organizada pra me consolar da engústia da dor. Mas como é que me arrumo com essa simples e tranquila alegria. É que não estou habituada a não precisar de meu próprio consolo. A palavra consolo aconteceu sem eu sentir, e eu não notei, e quando fui procurá-la, ela já se havia transformado em carne e espírito, já não existia mais como pensamento.

Vou então à janela, está chovendo muito. Po r hábito estou procurando na chuva o que em outro momento me serviria de consolo. Mas não tenho dor a consolar.

Ah, eu sei. Estou agora procurando na chuva uma alegria tão grande que se torne aguda, e que me ponha em contato com uma agudez que se pareça a agudez da dor. Mas é inútil a procura. Estou à janela e só acontece isto: vejo com olhos benéficos a chuva,e a chuva me vê de acordo comigo. Estamos ocupadas ambas em fluir. Quanto durará esse meu estado? Percebe que, com esta pergunta, estou apalpando meu pulso para sentir onde estará o latejar dolorido de antes. E vejo que não há o latejar da dor.

Apenas isso: chove e estou vendo a chuva. Que simplicidade. Nunca pensei que o mundo e eu chegássemos a esse ponto de trigo. A chuva cai não porque está precisando de mim, e eu olho a chuva não porque preciso dela. Mas nós estamos tão juntas como a água da chuva está ligada à chuva. E eu não estou agradecendo nada. Não tivesse eu, logo depois de nascer, tomado involuntária e forçadamente o caminho que tomei - e teria sido sempre o que realmente estou sendo: uma camponesa que está num campo onde chove. Nem sequer agradecendo ao Deus ou à natureza. A chuva também não agradece nada. Não sou uma coisa que agradece ter ser trasformado em outra. Sou uma mulher, sou uma pessoa, sou uma atenção, sou um corpo olhando pela janela. Assim como a chuva não é grata por não ser uma pedra. Ela é a chuva. Talvez seja isso que se poderia chamar de estar vivo. Não mais que isto, mas isto: vivo. E apenas vivo de uma alegria mansa.


Clarice Linspector - Tanta Mansidão

Extraído de Onde estivestes de Noite.

1 Comments:

Blogger Mayara La-Rocque. said...

A chuva que com sua forma, molha. Tem algo mais vivo do que isso? Clarisse foi bem coerente em falar de tanta mansidão...

8:46 PM  

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